Como você vê a vida: um viés psicanalítico

Na epígrafe do livro de José Saramago, Ensaio sobre a cegueira, há uma frase que tem me acompanhado há anos, desde que a li pela primeira vez: “Se podes olhar vê, se podes ver, repara!” Por diversas vezes me vi perguntando a mim mesma e aos que me rodeiam – como você vê a vida?

Quantas vezes nem sequer a olhamos! Quem dirá reparar, principalmente nas situações do cotidiano, quando muitas coisas passam despercebidas, como se não fossem importantes. Principalmente as fantasias que construímos ao longo do tempo.

As ideias e crenças que foram transmitidas pela família e pela sociedade; a sabedoria popular repleta de mitos comuns, que boa parte das pessoas repete sem pensar muito sobre eles – acredite, é nesse lugar comum que sua personalidade se forma, através dos seus pais, cuidadores, instituições sociais como escola, igreja, bairro e todos os grupos que povoam a infância.

Como você vê a vida? Com fantasia?

A psicanálise é a clínica da fantasia, e fantasiar é um processo que começa lá na infância e dura, aproximadamente, toda a vida. Isso mesmo, não paramos de fantasiar porque crescemos – só mudamos as fantasias. 

Algumas pessoas fantasiam mais, outras menos, mas todos nós fantasiamos, e isso é bom quando há um certo limite. Fantasias são fundamentais para o processo de desenvolvimento da criança. 

É através do faz de conta que os pequenos podem elaborar suas questões, ou seja, entender o mundo externo que os cerca, e entender o mundo interno, ainda que essa compreensão não seja como a de um adulto, porque não é de fato, e não tem como ser.

As crianças vão, através das brincadeiras, do mundo lúdico da fantasia, entendendo seu lugar no mundo, as relações com seus pais e demais pessoas, situações do seu cotidiano, dos lugares que frequenta, seus sentimentos. Tudo isso com o brincar: criando e recriando as vivências, utilizando a fantasia, o faz de conta.

Os adultos também têm um processo semelhante, mais relacionado aos desejos, sonhos, projetos, que primeiro acontecem no mundo das ideias como diria Platão; começam na nossa cabeça, na nossa imaginação.

Todas as coisas que conhecemos hoje, inclusive conceitos e formas de viver, são processos de imaginação. Um dia alguém pensou, “E se…” E assim foi – é – e continuará a ser.

Para os adultos, às vezes, as fantasias são estados idealizados da vida. São estados que não correspondem ao mundo real. Por exemplo: se você está solteira, solteiro, você pode fantasiar com o par perfeito, o par que vai lhe completar, ser sua alma gêmea, sua metade.

Ou, se você deseja filhos, pode fantasiar um bebê, uma criança boazinha, que atenderá a tudo que você pedir, educada, e que será aquilo que projetou.

E por aí vai.

Há todo tipo de fantasia no mundo 

Mas fantasiar nem sempre é algo saudável, porque na maioria das vezes, não se vê a realidade da forma como ela é. Se você vê o mundo através de uma lente distorcida, vive em um mundo paralelo, na melhor das hipóteses.

Imaginando situações e, consequentemente, se frustrando com elas e com as pessoas envolvidas, por esperar que a fantasia se realize. Isso no melhor dos cenários. Um exemplo bem simples é se perguntar: o que você espera das pessoas de modo geral? Será que elas atendem às suas expectativas?

No pior dos cenários a situação pode se complicar. Você pode até mesmo colocar sua vida em risco acreditando, confiando em quem não deveria, ou se expondo a situações perigosas, acreditando que nada de negativo irá acontecer.

Tudo isso por conta da fantasia, a historinha que você criou e desenvolveu só aí na sua cabecinha. E acredite, criamos várias ao longo de um dia e infinitas ao longo de uma vida.

Ver as fantasias com o olhar da realidade

A psicanálise traz você de volta à realidade, coloca-o na vida e isso permite que viva melhor, compreendendo suas fantasias e as fantasias do outro. Como isso acontece? Entendendo de onde as fantasias surgem, e por que razão você recorre a elas em dado momento da sua vida.

A terapia psicanalítica coloca você no lugar real, e é só nesse lugar que pode buscar o prazer de viver, de forma mais saudável e mudar o que não lhe agrada. Ela lhe dá a possibilidade de viver a sua essência, com todas as características positivas e negativas que fazem parte da vida de todo e qualquer ser humano.

Estar ciente do seu lugar real, o único onde pode mudar o que não lhe agrada, é viver com menos angústia, menos ansiedade, sabendo que as situações do dia a dia fazem parte do processo da construção da sua biografia. Da sua vida.

Ao conseguir adequar suas fantasias à verdadeira realidade, sem criar expectativas impossíveis, principalmente em relação a outras pessoas – e este é o grande desafio nos relacionamentos – você consegue ajustar sua bússola interna, para a vida como ela é, retirando aos poucos os véus que cobrem as possibilidades de viver a realidade da melhor forma possível.

E aí, como você vê a vida agora?

Jéssica Dias é Psicanalista e aborda, no processo terapêutico, as causas dos desconfortos que levam à depressão, ansiedade, fobias, pânico, insônia, comportamentos autodestrutivos e insatisfação com a vida, entre outros transtornos. É formada em Psicopedagogia, Psicanálise e Constelação Familiar Sistêmica. Conheça mais sobre seu trabalho.